STF Reverte Liminar de Barroso: Enfermeiros Não Poderão Realizar Aborto Legal

O Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão que repercute profundamente no cenário da saúde pública e dos direitos reprodutivos no Brasil, derrubou, por expressiva maioria de 10 votos a 1, a liminar concedida pelo ex-ministro Luís Roberto Barroso. A medida provisória autorizava enfermeiros e técnicos em enfermagem a realizar interrupções de gestação que já são legalmente previstas no país, como em casos de estupro, risco iminente à vida da gestante e anencefalia fetal. Essa deliberação do plenário virtual do STF reacende o debate sobre o acesso ao aborto legal e a autonomia de profissionais de saúde em um dos temas mais sensíveis da legislação brasileira.
A Liminar de Barroso e o Contexto da Decisão
A liminar em questão havia sido proferida pelo ministro Luís Roberto Barroso na sexta-feira, 17 de maio, marcando o seu último dia de atuação na Corte antes de sua aposentadoria antecipada, efetivada no sábado, 18 de maio. A decisão de Barroso buscava endereçar uma lacuna percebida na assistência à saúde pública, ao permitir que profissionais de enfermagem, dentro dos limites de sua formação, pudessem atuar na realização de abortos medicamentosos em fases iniciais da gestação, nos casos já previstos em lei.
A iniciativa de Barroso partiu de duas ações protocoladas por entidades representativas, que denunciavam a precariedade e as barreiras enfrentadas por mulheres que necessitam e buscam a interrupção legal da gravidez em hospitais públicos por todo o país. Essas ações destacavam a dificuldade de acesso aos procedimentos, muitas vezes devido à falta de profissionais habilitados ou à recusa em realizar os procedimentos, gerando um sofrimento adicional às gestantes que já se encontram em situações de vulnerabilidade extrema.
Para o então ministro, a ampliação da atuação dos profissionais de enfermagem seria um passo importante para garantir o direito constitucional à saúde e à dignidade dessas mulheres, aliviando a sobrecarga do sistema e garantindo que os procedimentos fossem realizados de forma segura e humanizada. Ele argumentava que, em muitos casos, a interrupção medicamentosa da gestação, especialmente em estágios iniciais, pode ser conduzida por enfermeiros e técnicos devidamente capacitados, o que já ocorre em diversas outras jurisdições ao redor do mundo.
Os Votos no Plenário Virtual e a Argumentação de Gilmar Mendes
Logo após a concessão da liminar por Barroso, foi iniciada uma votação no plenário virtual do STF para decidir se a medida seria referendada pelos demais ministros da Corte. Esse mecanismo permite que os julgamentos ocorram de forma eletrônica, com os ministros depositando seus votos em um prazo determinado, agilizando processos importantes. A votação foi concluída na sexta-feira, 24 de maio, com o resultado de 10 votos a 1 pela derrubada da liminar.
O voto que pautou a divergência e, consequentemente, a reversão da liminar foi o do ministro Gilmar Mendes, o decano do STF. Para Mendes, não havia uma urgência clara e inequívoca que justificasse a concessão de uma liminar – uma decisão de caráter provisório e excepcional – sobre um tema de tamanha relevância e complexidade. Ele argumentou que, embora a questão do acesso ao aborto legal seja de suma importância, a decisão sobre quem pode realizar o procedimento exigiria um debate mais aprofundado e uma análise colegiada que não se coadunava com a natureza emergencial de uma liminar.
O entendimento de Gilmar Mendes foi amplamente seguido pela maioria dos seus pares. Votaram pela derrubada da liminar os ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Nunes Marques, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Este resultado robusto indica uma cautela da Corte em intervir provisoriamente em questões que demandam uma análise mais exaustiva e um consenso mais amplo, preferindo que tais mudanças sejam debatidas no contexto de ações definitivas ou mesmo em outras esferas legislativas.
Aborto Legal no Brasil: Um Cenário de Desafios e Lutas
É crucial sublinhar que a decisão do STF não altera a legislação vigente sobre o aborto no Brasil. A interrupção da gravidez continua sendo permitida em três situações específicas, conforme o Código Penal brasileiro e decisões posteriores do próprio Supremo:
- Gravidez resultante de estupro: Quando a gestação é fruto de violência sexual, a mulher tem o direito de optar pelo aborto.
- Risco à vida da gestante: Se a continuidade da gravidez representar um perigo iminente e comprovado à saúde ou à vida da mulher.
- Anencefalia fetal: Em casos de fetos com anencefalia, uma malformação congênita incompatível com a vida fora do útero, a interrupção da gestação é permitida.
Mesmo com essas previsões legais, o acesso ao aborto legal no Brasil é marcado por uma série de obstáculos. Mulheres que se enquadram nesses critérios frequentemente enfrentam peregrinações por hospitais, falta de informação adequada, burocracia excessiva, recusa de profissionais de saúde por objeção de consciência (que, embora prevista em lei, não pode impedir o atendimento por toda uma instituição), e o estigma social que ainda cerca o tema. As dificuldades são ainda maiores em regiões mais afastadas e com menor infraestrutura de saúde.
As ações que levaram à liminar de Barroso precisamente visavam mitigar parte desses problemas, buscando uma solução prática para expandir a capacidade de atendimento. A proposta de incluir enfermeiros e técnicos em enfermagem na execução de procedimentos de aborto medicamentoso, especialmente na fase inicial da gestação, era vista como uma forma de descentralizar o atendimento, reduzir filas e diminuir o tempo de espera, fatores cruciais para a segurança e o bem-estar da gestante. O aborto medicamentoso, realizado com o uso de fármacos específicos, é considerado seguro e eficaz quando aplicado sob supervisão profissional e em condições adequadas.
A Abrangência da Decisão e o Papel dos Profissionais de Enfermagem
A formação e as competências dos profissionais de enfermagem são amplas e diversificadas no Brasil. Enfermeiros graduados e técnicos em enfermagem desempenham papéis vitais no sistema de saúde, desde a assistência básica até procedimentos mais complexos, sempre sob a orientação de protocolos e, em muitos casos, de médicos. A liminar de Barroso reconhecia essa capacidade, propondo que a atuação dos enfermeiros e técnicos fosse compatível com seu nível de formação profissional, especialmente nos casos de aborto medicamentoso na fase inicial da gestação.
A derrubada dessa liminar, contudo, significa que a prerrogativa para a realização de abortos legais continua restrita a médicos, conforme a interpretação predominante da legislação atual. Isso mantém o cenário de desafios para o acesso, principalmente em locais onde há escassez de médicos ou onde a objeção de consciência médica é generalizada. As entidades que ajuizaram as ações agora terão que buscar outras vias ou aguardar um julgamento definitivo que possa reavaliar a questão de forma mais abrangente.
Essa decisão do Supremo é um lembrete da complexidade do debate sobre o aborto no Brasil, que envolve não apenas aspectos jurídicos, mas também éticos, religiosos, sociais e de saúde pública. Qualquer alteração nas normas ou na interpretação sobre quem pode realizar o procedimento é recebida com intenso escrutínio e paixão por diferentes setores da sociedade.
O Debate Mais Amplo: Descriminalização do Aborto
É importante destacar que a discussão sobre a atuação dos enfermeiros e técnicos em abortos legais é distinta, embora correlata, de um debate ainda maior e mais fundamental que tramita no próprio STF: a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.
Antes de deixar o Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso também havia votado a favor da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Contudo, essa votação foi suspensa por um “pedido de destaque” feito pelo ministro Gilmar Mendes. O pedido de destaque é um instrumento processual que retira o processo do plenário virtual e o leva para o plenário físico ou para um novo plenário virtual em data a ser definida, permitindo um debate mais aprofundado e presencial entre os ministros, com a possibilidade de manifestações orais e discussões mais detalhadas.
A descriminalização do aborto até a 12ª semana é um tema de extrema sensibilidade e polarização no Brasil. Se aprovada, representaria uma mudança paradigmática na legislação, permitindo que mulheres interrompam a gestação por livre escolha nesse período inicial, sem a necessidade de justificativas específicas como estupro ou risco de vida. A paralisação desse julgamento, sem prazo para sua retomada, reflete a alta voltagem política e social do assunto. A reversão da liminar sobre a atuação de enfermeiros, embora não diretamente ligada à descriminalização, insere-se no mesmo contexto de cautela e ponderação que a Corte tem demonstrado diante de questões que geram grande controvérsia.
A decisão do STF de derrubar a liminar de Barroso sobre a atuação de enfermeiros em abortos legais é um marco que reafirma a complexidade e a delicadeza com que o Judiciário brasileiro aborda o tema do aborto. Embora a intenção da liminar fosse ampliar o acesso a um direito já garantido em lei, a maioria dos ministros entendeu que tal alteração exigiria um debate mais aprofundado, que não se coadunava com a natureza provisória de uma decisão liminar. Com isso, o cenário de acesso ao aborto legal no Brasil permanece com os desafios já conhecidos, enquanto o debate mais amplo sobre a descriminalização segue em compasso de espera, refletindo a profunda divisão da sociedade brasileira em torno dos direitos reprodutivos.