A Visão Oculta da Tributação: Por Que a Reforma Brasileira Precisa de Mais Transparência Econômica
A obra atemporal de Frédéric Bastiat, “O que se vê e o que não se vê”, oferece uma lente crítica poderosa para analisar as complexidades das políticas econômicas, especialmente no campo da tributação. Publicada no século XIX, sua mensagem permanece assustadoramente relevante para o Brasil contemporâneo: medidas econômicas mal concebidas frequentemente geram efeitos invisíveis que, no longo prazo, se manifestam como pesos muito maiores do que os benefícios superficiais e imediatos.
Essa perspectiva bastiatiana é fundamental para desvendar os meandros da política tributária brasileira, onde a incessante busca por aumentar a arrecadação muitas vezes obscurece a análise das consequências mais profundas e ocultas. Essas consequências impactam diretamente a produtividade nacional, a competitividade das empresas e a própria liberdade econômica dos cidadãos e empreendedores.
O Dilema do “Visto” e do “Não Visto” na Arrecadação
No cenário tributário, o que é imediatamente perceptível, o “que se vê”, é o alívio temporário das contas públicas quando impostos são aumentados ou novas taxas são instituídas. Os governos celebram o incremento na arrecadação, apresentando-o como uma solução para déficits orçamentários ou um meio para financiar programas sociais.
No entanto, o “que não se vê” são as ramificações de longo alcance dessa política: a retração de investimentos, o encarecimento da produção, o consequente fechamento de empresas – muitas delas de pequeno e médio porte, que são a espinha dorsal da economia –, e a desmotivação de empreendedores que se veem em desvantagem competitiva frente a empresas de países com regimes tributários mais eficientes e menos onerosos. Bastiat, em sua época, já denunciava essa miopia estatal, uma falha que, infelizmente, persiste com força no debate tributário brasileiro atual.
Quando examinamos as propostas de reforma tributária, notamos que nem sempre elas seguem o caminho da simplificação ou da redução da carga fiscal. Pelo contrário, muitas iniciativas tendem a promover maior centralização e, paradoxalmente, a aumentar a complexidade do sistema. É nesse ponto que a sabedoria de Bastiat ecoa com particular urgência: a sociedade deve ir além dos discursos oficiais e das promessas superficiais. É imperativo questionar os custos invisíveis que essas reformas impõem à economia real, aos negócios e, em última instância, aos consumidores.
Um exemplo notável dessa dissonância é a proposta da reforma tributária de adotar um modelo de tributação inspirado no “IVA europeu”. A ideia é instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituiriam outros cinco tributos existentes:
- Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)
- Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
- Programa de Integração Social (PIS)
- Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS)
- Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)
Apesar da inspiração, há uma importante e radical dissonância: enquanto na União Europeia os serviços financeiros – como empréstimos, seguros e operações bancárias – são tradicionalmente isentos de tributação no modelo IVA, no Brasil, a reforma tributária propõe um caminho dramaticamente distinto.
Dissonância da Reforma Tributária Brasileira e o Impacto nos Serviços Financeiros
A Lei Complementar 214/2025, um dos pilares da reforma, estabelece que os serviços financeiros serão sim tributados com base nas receitas dessas operações. Mais alarmante, essa tributação incluirá as margens de intermediação, popularmente conhecidas como spread bancário. Essa abordagem contrasta profundamente com o modelo de IVA praticado na União Europeia e em muitas outras jurisdições avançadas, onde os serviços financeiros costumam escapar da tributação justamente por sua natureza peculiar, que dificulta o encaixe na lógica tradicional de “valor adicionado”.
Essa diferença não é meramente uma questão técnica ou um detalhe de implementação. Ao decidir tributar o spread bancário e outras operações financeiras, o Brasil corre o risco de incorrer em custos adicionais significativos, que serão, inevitavelmente, repassados ao consumidor final, seja na forma de juros mais altos, seguros mais caros ou tarifas bancárias elevadas. Além disso, essa medida pode desconsiderar o princípio da neutralidade fiscal.
O conceito de neutralidade fiscal é um pilar crucial para um sistema tributário justo e eficiente. Ele preconiza que a tributação não deve gerar distorções artificiais ou barreiras à competitividade entre diferentes serviços, segmentos da economia ou formas de organização empresarial. Quando um setor, como o financeiro, é tributado de maneira excessiva ou atípica em comparação com outros, ou em relação a práticas internacionais, criam-se obstáculos reais à sua competitividade e ao funcionamento eficiente dos mercados.
Consequências da Escolha Brasileira
A experiência brasileira tem demonstrado repetidamente que toda tentativa de resolver problemas fiscais exclusivamente por meio do aumento da carga tributária é um equívoco com consequências danosas. Aumentar impostos sem uma contrapartida em eficiência e otimização do gasto público é como tentar encher um balde furado. O verdadeiro equilíbrio e a sustentabilidade fiscal não se encontram apenas na arrecadação, mas em uma reforma abrangente que contemple a redução do desperdício no gasto público, o combate à corrupção e, acima de tudo, o incentivo vigoroso à produção e ao investimento produtivo.
Caso contrário, o sistema tributário se transforma em uma máquina de punir quem gera riqueza, quem emprega e quem inova. Esse ciclo vicioso leva à estagnação econômica, desincentiva a criação de novas empresas e expulsa o capital produtivo para ambientes mais favoráveis.
Bastiat nos convida, portanto, a adotar uma postura fundamentalmente crítica diante de cada nova medida tributária. Devemos sempre nos perguntar: “Quem realmente se beneficia e quem, de fato, paga a conta?”. Essa pergunta, aparentemente simples, é a chave mestra para avaliar a justiça, a eficiência e a sustentabilidade de qualquer sistema fiscal. Ao negligenciarmos essa questão, corremos o risco de aceitar passivamente narrativas oficiais que mascaram a realidade econômica, reforçando um modelo que, em vez de impulsionar, sufoca a liberdade econômica e o potencial de desenvolvimento do país.
Globalização e a Carga Tributária: Um Desafio Urgente
Essa reflexão ganha contornos ainda mais urgentes e complexos em um cenário de economia globalizada. O empresário brasileiro não compete apenas com seus pares locais, mas com players internacionais que operam em ambientes regulatórios e fiscais consideravelmente menos hostis. Quando o Estado opta por tributar de forma excessiva e complexa, ele não está apenas preenchendo os cofres públicos; está, de fato, subtraindo a capacidade competitiva de suas próprias empresas e, por extensão, de todo o país.
O que não se vê, nesse contexto de alta tributação, são as inúmeras oportunidades de negócios, as inovações que não prosperam, os empregos que deixam de ser criados e a riqueza que não se multiplica, tudo por causa do fardo insustentável do excesso de custos e da burocracia tributária. Empresas que poderiam expandir, investir em tecnologia e gerar mais valor são forçadas a focar na gestão de um sistema complexo e oneroso, desviando recursos e energia da sua atividade principal.
A sabedoria de Bastiat também nos instrui sobre a interconexão entre responsabilidade individual e coletiva. Não basta apenas criticar, de forma isolada, o peso insuportável dos tributos. É crucial assumir que a manutenção de privilégios setoriais, de isenções fiscais questionáveis e de subsídios seletivos – muitas vezes concedidos a grupos de interesse específicos – tem um custo elevado que é, em última análise, distribuído por toda a sociedade. Quando cada setor da economia, cada grupo de pressão, busca se proteger e obter vantagens em detrimento do conjunto, o resultado inevitável é um sistema tributário profundamente desigual, distorcido e ineficiente, onde poucos ganham em curto prazo, mas a maioria, incluindo a própria nação, perde no longo prazo.
É fundamental que o Brasil se liberte dessa visão estreita e adote uma abordagem mais holística e transparente para a tributação. Uma verdadeira reforma deve visar não apenas a arrecadação, mas a promoção da justiça fiscal, da simplicidade, da neutralidade e, sobretudo, do crescimento econômico sustentável. Somente assim poderemos construir um futuro em que “o que não se vê” não seja um fardo oculto, mas sim as sementes de uma prosperidade duradoura.