Trancoso: A Metamorfose de uma Vila de Pescadores Capturada por João Farkas
O renomado fotógrafo João Farkas, figura incontornável da fotografia documental brasileira, tem testemunhado e registrado em suas lentes as profundas transformações de diversas paisagens do Brasil. Entre os muitos locais que capturou ao longo de sua extensa carreira, um em particular se destaca por sua vertiginosa mudança: Trancoso. A pequena vila baiana, outrora um refúgio isolado, emergiu para se tornar um dos destinos turísticos mais cobiçados do país, uma evolução que Farkas acompanhou de perto desde a sua descoberta pessoal na década de 1970.
A história de Trancoso, vista pelos olhos de Farkas, é uma narrativa fascinante de evolução e contraste. Naquela época, o que hoje é um epicentro de luxo e sofisticação era um povoado quase esquecido, preservando uma beleza rústica e intocada. “Quando eu cheguei lá, tinha, a maioria das casas era desocupada, tinha umas 100 casas, mais ou menos, da qual talvez uma boa parte era ocupada, a outra parte era desocupada. Era um lugar semi-abandonado e que parecia um presépio”, descreveu o fotógrafo, evocando uma imagem de simplicidade e encantamento quase místico.
O Encanto de um Presépio Semi-Abandonado
A descrição de Farkas sobre a Trancoso dos anos 70 como um “presépio” não é meramente poética; ela captura a essência de um lugar quase parado no tempo. As casas coloridas, dispostas em torno do famoso Quadrado, o coração da vila, mantinham-se em grande parte desocupadas ou habitadas por pescadores e suas famílias, que viviam uma rotina ditada pelos ritmos do mar. Não havia a infraestrutura turística que hoje caracteriza o local, nem o fluxo constante de visitantes nacionais e internacionais. A luz elétrica era um luxo distante, a água encanada, rara, e o acesso, uma verdadeira aventura.
Essa Trancoso original, capturada pela sensibilidade de João Farkas, representava um refúgio. Artistas, intelectuais e aventureiros foram os primeiros a se encantar por sua beleza selvagem e sua atmosfera de paz. Eles buscavam um contraste com a vida urbana, um lugar onde a natureza reinava e o tempo parecia dilatar. As fotografias de Farkas dessa época são documentos preciosos, retratando uma simplicidade que contrasta fortemente com a imagem contemporânea do destino. Elas eternizam as paisagens intocadas, os rostos dos moradores locais e a arquitetura singela que formavam o cenário desse “presépio”.
A Travessia Paraíso: O Acesso de Outros Tempos
Um dos aspectos mais marcantes da Trancoso de antigamente era a sua inacessibilidade. Chegar à vila não era tarefa fácil, e essa dificuldade era, em si, parte do seu charme e da sua capacidade de preservar sua autenticidade. Farkas relembrou as particularidades dessa jornada: “Eu cheguei de bicicleta até metade do caminho, o resto foi a pé. A pé pela praia.” Essa imagem evoca um cenário de aventura e isolamento, onde o deslocamento era uma experiência integral da viagem, não apenas um meio para chegar ao destino.
A ausência de estradas pavimentadas ou de opções de transporte motorizado significava que apenas os mais determinados ou os verdadeiramente encantados pela promessa de Trancoso se aventuravam a alcançá-la. A caminhada pela praia, sob o sol ou a luz da lua, conectava os viajantes diretamente à natureza exuberante da costa baiana. Essa dificuldade de acesso funcionava como uma barreira natural, protegendo a vila do turismo de massa e permitindo que sua cultura e paisagem permanecessem intactas por mais tempo. Contribuiu, sem dúvida, para a aura de mistério e exclusividade que ainda hoje, de certa forma, envolve Trancoso.
O Advento do Turismo de Luxo e os Investimentos
A tranquilidade e a beleza natural de Trancoso, uma vez descobertas por um círculo mais amplo de pessoas, começaram a atrair investimentos. Farkas apontou essa mudança, observando os impactos positivos que o capital trouxe para a região. “Aquele grupo de pessoas que foi para lá, que preservou um pouco aquilo e promoveu a beleza, deu muito certo. Deu muita exposição. Deu muita exposição, ficou um lugar atrativo”, afirmou o fotógrafo. Essa “exposição” transformou Trancoso, tirando-a de seu semi-anonimato para projetá-la no cenário nacional e internacional.
Os investimentos começaram modestamente, com a reforma de algumas casas no Quadrado, transformando-as em pousadas charmosas e restaurantes. Com o tempo, o boca a boca e a notoriedade de celebridades que começaram a frequentar o local, impulsionaram seu crescimento. A construção de melhores acessos, incluindo a melhoria da estrada até Porto Seguro e o próprio aeroporto da cidade, facilitou a chegada de turistas. Essa infraestrutura foi crucial para o desenvolvimento do turismo de luxo que hoje é a marca registrada de Trancoso. Hotéis boutiques de alto padrão, villas exclusivas e uma gastronomia refinada passaram a coexistir com o charme rústico original, criando uma fusão única de simplicidade e opulência.
Preservação e Progresso: Um Equilíbrio Delicado
A menção de Farkas sobre o “grupo de pessoas que foi para lá, que preservou um pouco aquilo e promoveu a beleza” é fundamental para entender a evolução de Trancoso. Diferentemente de outros destinos turísticos que sofreram com o desenvolvimento desordenado, Trancoso conseguiu, em grande parte, manter sua essência arquitetônica e paisagística. A restrição de construções no Quadrado, a manutenção das fachadas coloridas e a valorização da cultura local foram esforços de preservação que caminharam lado a lado com o progresso.
Contudo, o crescimento trouxe consigo desafios. A valorização imobiliária disparou, tornando a vida na vila proibitiva para muitos dos seus moradores originais. A questão da sustentabilidade e da preservação ambiental das praias e coqueirais tornou-se ainda mais premente. O dilema de conciliar o afluxo de turistas com a manutenção da identidade local é uma constante. Trancoso, hoje, é um exemplo complexo de como o turismo pode gerar prosperidade, mas também exige um olhar atento para garantir que o desenvolvimento não apague a história e a alma do lugar que o tornaram tão especial.
O Legado de João Farkas e a Memória de Trancoso
A contribuição de João Farkas para a memória de Trancoso é imensurável. Suas fotografias não são apenas belas imagens; são documentos históricos que registram a trajetória de um lugar único no Brasil. Elas oferecem uma janela para o passado, permitindo-nos contrastar a Trancoso de antes com a Trancoso de agora. Por meio de suas lentes, podemos sentir a nostalgia de uma era de maior isolamento e a admiração pela forma como a vila se reinventou.
A obra de Farkas serve como um lembrete da importância da fotografia documental na compreensão das transformações sociais e geográficas. Ela nos convida a refletir sobre o impacto do turismo, do desenvolvimento e da modernidade em comunidades que, antes, viviam em um ritmo distinto. Trancoso, sob o olhar de Farkas, transcende a mera descrição de um destino turístico; torna-se um estudo de caso sobre a capacidade humana de moldar e ser moldada pelo ambiente, e sobre a beleza efêmera de um “presépio” que floresceu para além dos sonhos mais selvagens dos primeiros que o vislumbraram.
Hoje, Trancoso continua a encantar. Com seu Quadrado tombado, sua igrejinha branca, suas praias paradisíacas e sua atmosfera de exclusividade descontraída, ela atrai um público que busca experiências únicas. A história que João Farkas começou a registrar nos anos 70 continua a ser escrita, com cada novo visitante, cada novo empreendimento e cada novo momento de contemplação sob as amendoeiras que guardam o coração da vila. A metamorfose de Trancoso, de vila semi-abandonada a destino de luxo, é um testemunho da força da natureza e do poder da visão humana.