ADPF das Favelas: STF e Letalidade Policial no Rio de Janeiro Após Operação Contenção

Em um cenário onde a segurança pública e os direitos humanos frequentemente colidem, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem buscado estabelecer balizas para as operações policiais, especialmente no Rio de Janeiro. Em abril deste ano, a mais alta corte do país definiu um conjunto de medidas robustas com o objetivo de frear a alarmante letalidade policial durante as incursões da Polícia Militar contra o crime organizado nas diversas comunidades fluminenses. Essa decisão, que reverberou por todo o sistema de segurança e justiça, voltou a ser intensamente debatida após os eventos da recente “Operação Contenção”, que resultou em um elevado número de mortes e reavivou a tensão entre o poder executivo estadual e o judiciário.
A origem dessas diretrizes remonta ao julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, popularmente conhecida como a ADPF das Favelas. Essa ação foi protocolada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), com o propósito de contestar a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, que, na visão dos requerentes, resultava em uma escalada da violência e na violação sistemática de direitos fundamentais, especialmente nas áreas mais vulneráveis. O julgamento da ADPF 635 tornou-se um marco, buscando equilibrar a necessidade de combate ao crime com a garantia da vida e da dignidade dos cidadãos, mesmo em contextos de confronto.
Após a finalização do julgamento, uma série de órgãos e instituições foram incumbidos da crucial tarefa de monitorar o cumprimento das determinações do STF. Entre eles, destacam-se a Defensoria Pública da União (DPU) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que passaram a atuar como vigilantes da aplicação dessas novas regras, garantindo que as operações policiais se adequassem aos parâmetros constitucionais e às diretrizes judiciais.
A terça-feira, 28 de maio, trouxe à tona, de forma contundente, a discussão sobre a eficácia e a aderência à ADPF das Favelas. A deflagração da Operação Contenção, nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio, em uma tentativa de conter o avanço territorial da facção criminosa Comando Vermelho, culminou na morte de mais de 120 pessoas. O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, reagiu publicamente, criticando severamente a decisão do Supremo e referindo-se à ADPF como “maldita”, evidenciando um claro conflito de narrativas e abordagens na condução da segurança pública estadual.
Diante do cenário de alta letalidade e das graves denúncias que se seguiram à operação, as defensorias da União e do Rio de Janeiro, o Conselho Nacional do Ministério Público e o próprio Supremo Tribunal Federal iniciaram apurações rigorosas para verificar se as balizas estabelecidas durante o julgamento da ADPF 635 foram efetivamente respeitadas. Em uma resposta direta à controvérsia, o ministro Alexandre de Moraes, relator temporário da ADPF, solicitou formalmente que o governador Claudio Castro prestasse esclarecimentos detalhados sobre a operação. Adicionalmente, Moraes convocou uma audiência presencial para a próxima segunda-feira, 3 de junho, no Rio de Janeiro, a fim de discutir o tema em profundidade com as autoridades envolvidas e representantes da sociedade civil.
O que diz a ADPF das Favelas?
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635 representa um esforço para impor maior transparência, planejamento e controle sobre as operações policiais, visando a diminuição da letalidade e a proteção dos direitos fundamentais da população. O tribunal estabeleceu um conjunto de regras que o governo do Rio de Janeiro deve seguir, abrangendo desde o planejamento das ações até o acompanhamento psicológico dos agentes e a preservação de evidências.
Conforme a decisão judicial, o governo fluminense está obrigado a seguir diversas diretrizes cruciais, que incluem:
- Uso proporcional da força policial: As operações devem ser planejadas antecipadamente, e o uso da força deve ser estritamente proporcional à ameaça e à necessidade, priorizando a preservação da vida. Isso exige uma avaliação prévia de risco e um treinamento constante dos agentes para desescalar conflitos.
- Câmeras nas viaturas: O estado do Rio precisa comprovar a instalação e o funcionamento de câmeras nas viaturas das polícias Militar e Civil. Embora os equipamentos já sejam amplamente utilizados nas fardas dos policiais, a extensão para as viaturas visa garantir uma gravação mais abrangente das operações, exceto em casos específicos de atividades investigativas sigilosas.
- Operações nas proximidades de escolas e hospitais: As incursões policiais nessas áreas sensíveis devem ser realizadas com extrema cautela, respeitando rigorosamente o uso da força e evitando, sempre que possível, horários de entrada e saída de alunos e pacientes, para minimizar riscos a civis e o impacto nos serviços essenciais.
- Plano de reocupação territorial: Os ministros determinaram que o governo do Rio elabore e implemente um plano estratégico para a reocupação de áreas que se encontram dominadas por organizações criminosas. Este plano deve ser abrangente, visando não apenas a retirada dos criminosos, mas também a subsequente instalação de serviços públicos e a garantia da presença estatal legítima e contínua.
- Morte de policiais e de civis: Em casos de mortes decorrentes de operações, sejam de policiais ou de civis, os agentes que atenderem a ocorrência têm a obrigação de preservar integralmente o local do crime até a chegada de um delegado responsável. O Ministério Público também deve ser comunicado imediatamente, para que possa iniciar as investigações e a coleta de provas sem interferências.
- Ambulâncias em operações policiais: É obrigatório que as operações policiais contem com o acompanhamento de ambulâncias. Essa medida visa garantir atendimento médico rápido e eficiente a qualquer pessoa ferida, seja civil ou agente, minimizando as chances de óbitos por falta de socorro.
- Participação da Polícia Federal: O STF determinou a abertura de inquéritos para apuração de crimes interestaduais e internacionais cometidos pelas organizações criminosas que atuam no Rio de Janeiro. A Polícia Federal passará a atuar, focando no combate a milícias, tráfico de armas e drogas, e lavagem de dinheiro, trazendo uma dimensão federal à investigação desses crimes complexos.
- Corregedorias das polícias: Os órgãos corregedores das polícias Militar e Civil, responsáveis por acompanhar as ocorrências de mortes, terão um prazo máximo de 60 dias para finalizar o processo disciplinar interno relacionado a esses eventos. Esta medida busca agilizar a responsabilização e a transparência.
- Buscas domiciliares: As buscas domiciliares só podem ser realizadas durante o dia, salvo em situações de flagrante delito. Não é admitido o ingresso forçado de policiais em residências sem mandado ou fora das circunstâncias de flagrante, reforçando a proteção do direito à inviolabilidade do domicílio.
- Acompanhamento psicológico de policiais: É obrigatória a participação de policiais envolvidos em operações que resultem em mortes em programas de assistência psicológica e social. Esta medida reconhece o impacto traumático desses eventos sobre os agentes e visa promover sua saúde mental e bem-estar.
- Relatórios de operações policiais: As polícias devem elaborar relatórios detalhados de todas as operações realizadas, contendo informações precisas sobre planejamento, execução e resultados. Esses relatórios precisam ser encaminhados ao Ministério Público para escrutínio, garantindo a prestação de contas e a transparência das ações.
A Controversa “Operação Contenção” e suas Repercussões
A Operação Contenção, conduzida pelas polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro, figurou como uma das mais letais e de maior escala nos últimos 15 anos no estado. O balanço final registrou a morte de aproximadamente 120 pessoas, incluindo quatro policiais. O governo estadual, em um posicionamento que gerou forte contestação, classificou a operação como “um sucesso”, afirmando que as mortes ocorreram em decorrência da violenta reação dos criminosos e que aqueles que se renderam foram devidamente presos. No total, foram efetuadas 113 prisões, sendo 33 de indivíduos oriundos de outros estados, e um expressivo arsenal de 118 armas e 1 tonelada de drogas foi apreendido. O objetivo declarado da operação era frear o avanço territorial da facção Comando Vermelho e cumprir 180 mandados de busca e apreensão e 100 mandados de prisão, sendo 30 deles expedidos pela Justiça do Pará.
A operação envolveu um efetivo de 2,5 mil policiais, o que demonstra a magnitude da ação e a complexidade do cenário de segurança pública no Rio de Janeiro. Contudo, os confrontos intensos e as subsequentes ações de retaliação por parte dos criminosos mergulharam grande parte da cidade em um estado de pânico. Vias importantes foram fechadas, escolas e comércios suspenderam suas atividades, e postos de saúde foram impactados, paralisando a vida cotidiana de milhares de moradores.
As denúncias que emergiram após a operação pintaram um quadro sombrio, com moradores das regiões afetadas, familiares das vítimas e diversas organizações de direitos humanos denunciando a operação como uma “chacina”. Relatos chocantes vieram à tona, descrevendo cadáveres recolhidos pelos próprios moradores de áreas de mata que circundam a região, alguns com sinais evidentes de execução, como degolamento, levantando sérias questões sobre a conduta dos agentes e o cumprimento das diretrizes da ADPF das Favelas. As imagens e os testemunhos trouxeram à tona o drama humano por trás dos números, reacendendo o debate sobre os limites da ação policial e a necessidade de uma investigação imparcial e rigorosa.
O Debate sobre Segurança Pública e Direitos Humanos no Rio
O embate entre a ADPF das Favelas e a “Operação Contenção” é um microcosmo do desafio perene que o Rio de Janeiro enfrenta: como combater a criminalidade organizada de forma eficaz sem violar os direitos humanos e sem perpetuar um ciclo de violência que afeta predominantemente as populações mais vulneráveis. O STF, com a ADPF 635, buscou criar um arcabouço legal para operações policiais que reconhece a complexidade do terreno, mas insiste na necessidade de observância de preceitos constitucionais. As regras impostas não visam impedir a ação policial, mas qualificá-la, tornando-a mais estratégica, transparente e menos letal.
A resposta do governo estadual, que considerou a operação um sucesso apesar do alto número de mortos e das denúncias de execuções, reflete uma perspectiva que prioriza a “guerra ao crime” acima de considerações sobre letalidade e direitos. Essa dicotomia de abordagens gera uma polarização perigosa, onde a confiança da população nas instituições de segurança pública é erodida e a justiça se torna um conceito flexível.
A convocação do governador pelo Ministro Alexandre de Moraes e a audiência agendada são passos cruciais para reafirmar a autoridade do judiciário e a necessidade de prestação de contas. A investigação sobre o cumprimento das medidas da ADPF das Favelas, conduzida por diversos órgãos, será fundamental para determinar se os preceitos definidos foram ignorados e quais serão as consequências. O desfecho dessas apurações não apenas definirá o futuro de políticas de segurança pública no Rio, mas também servirá como um termômetro para a capacidade do Estado de Direito de proteger seus cidadãos em contextos de alta vulnerabilidade e violência. A sociedade fluminense, e o Brasil como um todo, aguardam respostas que possam apontar para um caminho onde a segurança e a justiça andem de mãos dadas, garantindo a vida e a dignidade de todos.
 
			 
			 
			