De Rembrandt a Dionísio Del Santo: Luz, Matéria e Legado

De Rembrandt a Dionísio Del Santo: Luz, Matéria e Legado

Foto: Governo Estadual

A Gravura Através dos Séculos: O Diálogo Atemporal entre Rembrandt e Dionísio Del Santo

A arte, em sua essência mais profunda, transcende barreiras de tempo e espaço, encontrando pontos de conexão inesperados entre mestres de eras distintas. Foi precisamente essa percepção que surgiu de um acaso cultural recente: a iminente abertura da exposição “Dionísio Del Santo: o construtivo ontem e hoje” na Matias Brotas Galeria, e a simultânea visita à fascinante mostra “Rembrandt, o mestre da luz e da sombra” no Centro Cultural dos Correios. Entre as paredes que abrigavam as obras desses dois gigantes da arte, um fio condutor silencioso e poderoso se revelou: a gravura. Essa técnica milenar, capaz de inscrever o tempo na matéria, prova sua força inabalável, estabelecendo um encontro surpreendente entre o gesto barroco do holandês e a precisão construtiva do brasileiro. Ambos, à sua maneira, transformaram a técnica em um veículo para o pensamento profundo e a expressão da alma.

Rembrandt: O Mestre da Luz, Sombra e Emoção na Água-forte

Harmenszoon van Rijn Rembrandt, figura central do Século de Ouro holandês, é universalmente reconhecido por sua maestria na pintura, mas sua contribuição à arte da gravura é igualmente monumental. Suas águas-fortes não são meras reproduções de desenhos, mas obras de arte independentes, nas quais ele explorava com profundidade a luz, a sombra e a condição humana. No universo de Rembrandt, o metal, normalmente associado à rigidez, tornava-se um campo fértil para a criação de mundos de luz e mistério. O processo da água-forte, que envolve o uso de ácidos para corroer o metal e criar sulcos onde a tinta se depositaria, era para Rembrandt uma ferramenta de revelação. Longe de destruir a superfície, o ácido, sob seu controle magistral, desvendava camadas de significado.

O traço de Rembrandt, em vez de apenas fixar uma imagem, parecia respirar. Ele dominava a arte do chiaroscuro não apenas em suas telas, mas também em suas gravuras, onde as variações de densidade do traço e a profundidade dos sulcos criavam uma gama tonal impressionante, do negro mais profundo à mais pura luminosidade. Suas gravuras são, em essência, lições de como olhar. Elas convidam o observador a ir além do visível, a decifrar nuances, a perceber o que se esconde nas sombras e o que se revela na luz. É um convite à contemplação de que a verdadeira arte, muitas vezes, reside no contraste, na tensão entre o que se manifesta e o que se mantém em silêncio. Através de cenas bíblicas, retratos e paisagens, Rembrandt imortalizou não apenas figuras, mas emoções, dramas e a intrínseca complexidade da existência humana.

Dionísio Del Santo: A Construção da Serenidade na Xilogravura

Séculos depois e em um contexto cultural completamente diferente, o artista capixaba Dionísio Del Santo (1926-2005) encontrou na madeira o território para sua expressão artística, em particular através da xilogravura. Em contraste com a dramaticidade barroca de Rembrandt, Del Santo era um expoente do construtivismo brasileiro, uma corrente que buscava a ordem, o rigor e a depuração formal. Suas xilogravuras são o resultado de um pensamento que anseia pela clareza, pelo silêncio e pela estrutura essencial das formas.

A técnica da xilogravura é intrinsecamente desafiadora. Trabalhar com a madeira exige um conhecimento profundo do material, paciência e uma precisão cirúrgica. Cortar, medir, depurar – cada etapa é um ato de construção e desconstrução. Del Santo transformava a aparente dureza da madeira em obras de delicadeza surpreendente, onde cada linha gravada se tornava uma vibração de luz, e as superfícies intocadas se convertiam em sombras em repouso. Ele buscava com o mínimo de elementos o máximo de sentido, seguindo a máxima construtiva de economia formal e clareza visual. A aspereza e a resistência da madeira, em suas mãos, não eram um obstáculo, mas uma aliada na busca por uma linguagem artística concisa e impactante. Suas composições geométricas, muitas vezes em preto e branco, refletem uma busca pela harmonia e pelo equilíbrio, onde cada elemento tem seu lugar e função dentro de um todo coerente.

O Gesto Essencial: Gravando o Tempo e o Pensamento

Apesar das diferenças estilísticas e temporais que separam Rembrandt e Dionísio Del Santo, eles se encontram em um gesto essencial e atemporal: o de inscrever o tempo na matéria. Ambos compreendiam que gravar é mais do que criar uma imagem; é um ato de permanência, é dar forma e materialidade ao que, de outra forma, se perderia no fluxo incessante da existência. É, em última análise, um meio de eternizar um momento, um pensamento, uma emoção.

Se para Rembrandt, iluminar era revelar o drama intrínseco da condição humana, suas águas-fortes mergulhando nas profundezas da emoção e da psique, para Dionísio Del Santo, estruturar era construir a serenidade. O holandês nos convida a um mergulho na emoção e na complexidade psicológica, enquanto o brasileiro nos conduz a um universo de razão, ordem e contemplação silenciosa. No entanto, ambos, com suas ferramentas e suas filosofias distintas, fizeram da gravura um exercício de autoconhecimento e de persistência. A repetição do gesto, a paciência com o material, a busca incessante pela forma ou pela luz perfeita, transformam a prática artística em uma verdadeira pedagogia do olhar e do fazer.

Essa conexão profunda ressoa nas palavras do próprio Dionísio Del Santo, que com uma sabedoria singular, escreveu em seu “Curso Demonstração das Técnicas Serigráficas”, em 1973:

“Considerar que o artista é apenas mestre de si mesmo. Ou, o verdadeiro discípulo ter a obrigação de superar o mestre, isto é, ser ou tornar-se seu próprio mestre. O autoconhecimento ser indispensável, ser inevitável um longo e tenaz exercício a fim de se afiar as garras, capazes de modelar o barro informe da vida. Ou seja, fazer, criar, materializar a dimensão de beleza que possa existir dentro de nós.”

Essas palavras de Del Santo reverberam com uma verdade universal sobre a prática artística. Elas nos ensinam que o fazer arte é, em sua essência, um fazer educativo: uma prática constante de escuta atenta, de paciência para com o processo, de aprendizado contínuo e de auto-superação. Gravar, em qualquer de suas formas, é, afinal, educar o olhar – é aprender a ver o mundo não apenas como ele é, mas como quem o reinventa a cada traço, a cada corte, a cada mancha de tinta. É um ato de modelar não apenas a matéria, mas a própria percepção da realidade.

O Legado e o Convite à Contemplação

É nesse gesto fundamental de educar o olhar e de insistir na materialização da beleza interior que o legado de Dionísio Del Santo se inscreve na história da arte brasileira. Um artista de rigor estético impecável e sensibilidade ímpar, ele gravou na madeira e no tempo a beleza da permanência, a força da estrutura e a serenidade da forma. Sua obra continua a inspirar e a provocar a reflexão sobre o papel da arte na construção do pensamento e da percepção.

Para aqueles que desejam mergulhar nesses universos artísticos, as exposições oferecem uma oportunidade ímpar. A grandiosa mostra “Rembrandt, o mestre da luz e da sombra” estará em cartaz no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, até 15 de dezembro. Simultaneamente, “Dionísio Del Santo: o construtivo ontem e hoje” será inaugurada na Matias Brotas Galeria em 6 de novembro, com visitação estendida até 12 de fevereiro. São ocasiões imperdíveis para testemunhar a força da gravura e o diálogo atemporal entre esses dois mestres que, de diferentes modos, gravaram sua marca indelével na história da arte.